Avenida Chile - Empurrão do Governo
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Albert Einstein
A avenida Chile, uma reta com quatro pistas e cerca de 500 metros de extensão, no centro do Rio, ganhou em algum momento nos meios econômicos o apelido de "Wall Street", uma alusão aos pesos pesados da economia que povoam seus prédios altos e elegantes. Só que, ao contrário da famosa rua nova-iorquina que abriga o coração do capitalismo privado mundial, na via carioca é o capital do Estado que tem predominância. Seja na mestiça Petrobras, a maior empresa industrial do país, seja no puro-sangue Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), dono do virtual monopólio dos financiamentos domésticos de longo prazo à economia brasileira.
No edifício-sede do BNDES, há uma atmosfera leve de limpeza e civilidade que contrasta com o caos do ponto de ônibus do lado de fora, com suas filas de pessoas cansadas, a pressa, a confusão dos camelôs. Dentro daquela ilha de bem-estar se concentra a maior parte dos 2.723 empregados do banco, quase 2.200 deles com curso superior, incluindo 36 doutores, 254 mestres e 380 que completaram cursos de MBA.
A quase totalidade dos empregados passou em apertados gargalos de concursos públicos, constituindo-se também em uma ilha de conhecimento de competência reconhecida até pelos críticos mais ferozes. No último concurso, realizado em março, o salário inicial era de R$ 9.182,01 para nível superior e de R$ 2.925,39 para nível médio. De acordo com a Pesquisa Mensal de Emprego (PME) do IBGE, em fevereiro, o rendimento médio das pessoas ocupadas na regiões metropolitanas de seis das maiores capitais brasileiras - Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio, São Paulo e Porto Alegre - era de R$ 1.849,50.
O economista pernambucano Luciano Coutinho, 66 anos, de orientação desenvolvimentista, completa no mês que vem seis anos no time desse transatlântico classe A e já é o seu segundo mais longevo comandante, perdendo apenas para Marcos Pereira Vianna, que pilotou o barco de outubro de 1970 a março de 1979. Sem ser petista, mas com trânsito fácil entre os intelectuais do partido, ganhou a confiança do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e da presidente Dilma Rousseff, de quem foi professor na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e com quem dialoga sem intermediários. Também é amigo e discípulo de Fernando Henrique Cardoso, o tucano que antecedeu os petistas no comando do país. Coordenador, em 1994, do conceituado Estudo da Competitividade da Indústria Brasileira, Coutinho transita com facilidade entre a academia e o empresariado, graças ao seu trabalho de mais de dez anos à frente da LCA Consultores até assumir o cofre do banco mais poderoso do país.
Desde 1952, o BNDES tem sido o proeiro de todos os barcos que conduziram os principais programas de desenvolvimento econômico, ou de reestruturação, dos sucessivos governos brasileiros. Naquele ano, o banco de fomento veio à luz gestado pela Comissão Mista Brasil-Estados Unidos (CMBEU), criada para traçar o Plano de Reaparelhamento Econômico do segundo governo Getúlio Vargas (1950-1954).
O vice-presidente da instituição, João Carlos Ferraz, responsável por seu planejamento: "O BNDES tem a escala e o escopo necessários para enfrentar os desafios do desenvolvimento neste momento"
De 2003 para cá, Lula e Dilma intensificaram como nunca o papel do banco como promotor do desenvolvimento e até quebraram um paradigma a partir da crise mundial desencadeada pelo colapso do mercado imobiliário americano em 2008: o dinheiro para os financiamentos do banco, historicamente originado no repasse de algum imposto, taxa ou contribuição, passou a sair majoritariamente dos cofres do Tesouro Nacional.
Os quase R$ 300 bilhões repassados pelo Tesouro desde 2009, justificados por um declarado propósito de remar contra a maré da crise, possibilitaram ao BNDES elevar a níveis "everésticos" seus financiamentos anuais, que passaram de R$ 37,4 bilhões em 2002, último ano de governo do Fernando Henrique, para R$ 168,4 bilhões em 2010 ou R$ 156 bilhões no ano passado.
A contrapartida de tamanha generosidade é que o universo de devedores cresceu e o bolo das faturas a receber chegou no ano passado à casa dos R$ 700 bilhões, elevando os riscos e atiçando o discurso dos críticos. No mês passado, a agência de classificação de risco americana Moody"s colocou mais uns gravetos na fogueira ao rebaixar a nota do banco de A3 para Baa2, o que significou uma queda de dois degraus no atestado de solidez da instituição. A Moody"s justificou sua decisão, relevada na avenida Chile, com o argumento de uma distribuição exagerada de créditos em relação ao tamanho do capital do banco estatal. A alavanca estaria suportando mais peso sem escoramento adicional.
Para além dos riscos, os críticos entendem que o governo Dilma está exaurindo os cofres públicos ao repassar ao BNDES, ao custo de 5% ao ano - cotação hoje da Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP) -, dinheiro tomado ao mercado a uma taxa em torno de 7,25% - considerando a cotação da Selic, a taxa de juros básica da economia do país. E como o BNDES tem emprestado, na tentativa de romper a letargia dos empreendedores, a juros menores do que 5%, cabendo ao Tesouro cobrir a diferença, o economista Mansueto Almeida, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), um dos principais críticos dos empréstimos do Tesouro ao BNDES, resume em artigo postado no seu blog no dia 21: "Acho difícil essa história ter um final feliz".
Em 2012, os ativos do banco somavam 16,25% do PIB e os desembolsos respondiam por 19,5% dos investimentos feitos no país
Armando Castelar, pesquisador da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e ex-funcionário do banco estatal, é um dos muitos que veem necessidade de discussão dos próprios empréstimos regulares do BNDES. Para ele, sintetizando um time de economistas de peso com nomes como Persio Arida, já passou da hora de discutir o que consideram ser empréstimos subsidiados do banco estatal. A prática seria inibidora de uma queda mais consistente da Selic, o que poderia abrir o sinal para a entrada do sistema bancário privado nos financiamentos de longo prazo, como ocorre em outras partes do mundo.
"Por que subsidiar a construção de uma fábrica?", pergunta Castelar, ressalvando, como de resto é quase unanimidade, que a competência técnica do BNDES é indiscutível. Mas no time do qual ele faz parte já há quem ponha em xeque até mesmo a existência do banco.
Ao contrário da vizinha Petrobras, de longe sua maior devedora - R$ 49 bilhões em 31 de dezembro, ou 6,4% dos R$ 715,5 bilhões dos ativos totais do banco -, que só tem colecionado dissabores, o BNDES tem motivos para comemorar, começando por seus incríveis números que tantas controvérsias despertam. No fim de 2012, os ativos do banco somavam nada menos que 16,25% do total do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro e os desembolsos de R$ 156 bilhões do banco (incluem capital de giro e apoio à exportação) respondiam, sozinhos, por 19,5% de todos os investimentos (R$ 797 bilhões) feitos no país no período.
Há seis anos no cargo, Luciano Coutinho já é o segundo mais longevo na presidência do banco, desde que a instituição foi criada, em 1952
Internacionalmente, a investida do banco federal contra a maré baixa dos investimentos privados está agradando. Em seu mais recente relatório, a Comissão de Crescimento da respeitada London School of Economics (LSE) recomenda a criação de um banco estatal no Reino Unido para financiar investimentos em infraestrutura e cita o BNDES como um dos exemplos a ser seguidos. Paralelamente, no fim do mês passado, desembarcava na sede do banco estatal brasileiro uma missão do governo dos Estados Unidos para conhecer os mecanismos de funcionamento do BNDES, com o intuito de servir de espelho para a criação de um banco similar no país de Barack Obama, com foco também no financiamento à infraestrutura.
Se as críticas já não abalam a imponente sede fumê do BNDES, o bom conceito internacional evidenciado pelos dois episódios estimula seu cérebro. Seu vice-presidente, João Carlos Ferraz, principal responsável pelo planejamento da instituição, rebate as críticas e enxerga cenários favoráveis, até mesmo quanto à maior presença futura do sistema financeiro privado no financiamento a investimentos. "Historicamente, o BNDES sempre teve uma fonte de recursos que lhe desse condições de ocupar um papel: fornecer crédito em condições internacionais competitivas", diz. Ainda assim, "talvez a gente ofereça financiamento de longo prazo a uma taxa nominalmente mais cara do que se oferece lá fora, mas pegar dinheiro fora tem risco cambial, por exemplo."
Para cumprir seu papel, Ferraz vê com naturalidade que o BNDES tenha uma fonte de recursos mais baratos que os de mercado e que essa fonte vá se adaptando às situações históricas. "A característica do BNDES sempre foi de ter uma fonte de "funding" [dinheiro] permanente que muda ao longo do tempo", diz Ferraz, justificando a atual preponderância do Tesouro nesse papel.
A Moody"s justificou a decisão mencionando uma distribuição exagerada de créditos em relação ao tamanho do capital do banco
Para o vice-presidente, ainda será extenso o caminho que levará o sistema financeiro privado a dividir o espaço do longo prazo com o BNDES. "Não vai ocorrer um plim-plim e, um belo dia, tudo mudou!", afirma. E lembra: as captações (passivos) dos bancos em geral ainda são de curto prazo. Ferraz vê a transição começando pela renda variável e a renda fixa privada. O crédito trilharia um caminho mais difícil, que deverá começar pelo setor habitacional.
Diferentemente da corrente do pensamento econômico ortodoxo, na qual se concentra a maioria dos críticos do BNDES, que vê na expansão dos gastos públicos o caminho do abismo, Ferraz enxerga um horizonte virtuoso no qual a atuação do banco, injetando rios de dinheiro nas empresas, vai carregar o setor financeiro privado, na esteira da normalidade macroeconômica.
"O BNDES tem a escala e o escopo necessários para enfrentar os desafios do desenvolvimento neste momento", afirma. Só que, para o futuro, Ferraz considera que "os desafios do investimento são tão amplos" que a indústria financeira, em crescente sofisticação, acabará assumindo parte da tarefa. Para o vice-presidente, carregando no economês, o futuro do Brasil é o "crowding in", quando o expansionismo fiscal do Estado alavanca o investimento privado, e não o "crowding out", o efeito contrário, quando o Estado enxuga os recursos privados para se financiar e sobra pouco dinheiro para os investimentos.
Para Armando Castelar, já passou da hora de discutir o que consideram ser empréstimos subsidiados do BNDES
Ferraz é professor licenciado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), núcleo do pensamento desenvolvimentista, assim como a Unicamp, onde Luciano Coutinho foi professor. Juntos eles comandam uma diretoria de mais seis membros, formada por dois petistas históricos, os mineiros Maurício Borges e Guilherme Lacerda, um aliado do ministro Guido Mantega (Fazenda), Luiz Eduardo Melin, e por três funcionários de carreira do banco, Julio Ramundo, Roberto Zurli e Fernando Marques Santos.
É a diretoria do BNDES a última instância de aprovação dos financiamentos do banco, cujo processo começa na análise do projeto pela equipe técnica da área demandada. Esse processo pode durar dois dias, no caso de operações de curto e médio prazo intermediadas por outros bancos, que, nesses casos, assumem o risco de crédito, ou muitos meses, dependendo da natureza e complexidade do financiamento.
Essa análise é um dos principais focos de críticas ao banco, acusado de morosidade e de preferência pelos grandes e por setores eleitos que nem sempre precisam do dinheiro subsidiado que ele empresta. São os chamados "campeões nacionais". O caso recente mais emblemático é o do apoio à formação de conglomerados na área de proteína animal. A JBS internacionalizou-se graças ao apoio do banco, que somente de participação acionária detém 19,85% do seu capital.
Lessa acha um "erro tremendo" o apoio à internacionalização, que pode vir a ser o caminho para a perda do controle de empresas estratégicas
Essa participação se dá por intermédio da BNDESPar, o braço do banco para injeção direta de capital nas empresas, outra vertente da atuação do BNDES permanentemente sob fogo cruzado quanto às suas escolhas.
"Não está claro qual é o objetivo, o que a sociedade ganha com isso", questiona Castelar, da FGV. Até Carlos Lessa, ex-presidente do banco (2003-2004) e um dos nomes mais representativos do desenvolvimentismo brasileiro tem seus senões. Embora concorde com a estratégia de estimular a criação de grandes grupos, Lessa considera um "erro tremendo" o apoio à internacionalização, que, no seu entendimento, pode vir a ser o caminho para a perda do controle interno de empresas estratégicas, como a Vale, pela via da Bolsa de Nova York.
Ferraz argumenta que o banco não pode discriminar - grandes ou pequenos grupos - e seria um erro se favorecesse uns em detrimento dos outros. No ano passado, o apoio às pequenas e médias empresas alcançou cerca de um terço dos R$ 156 bilhões emprestados pelo banco. "As pequenas geram empregos, mas são as grandes que puxam os investimentos", ressalta.
O Brasil tem um rebanho bovino que é mais do que o dobro do americano, observa Ferraz, mas mesmo assim perde de goleada em produtividade, tanto que a quantidade exportada é menor. "A modernização do parque industrial das proteínas ainda tem uma longa trajetória e implica a criação de empresas consolidadoras", afirma um confiante Ferraz.
Quem sabe a avenida Chile não venha a exibir também a estátua de um touro, como a que figura no coração do capitalismo privado mundial.
Autor(es): Por Chico Santos | Do Rio
Valor Econômico - 12/04/2013