Proposta de reforma nos concursos públicos

 

Descobrir consiste em olhar para o que todo mundo está vendo e pensar uma coisa diferente.

Roger Von Oech

 

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Estudo sugere mudanças radicais no processo de contratação de servidores baseado na análise de seleções federais


Quem sonha com a carreira de servidor público cumpre uma rotina de estudos rígida para passar nos concursos. No entanto, em vez de servir como uma maneira de cobrar as competências necessárias para os cargos, as provas podem ir contra o principal objetivo. Por isso, o governo quer saber: qual é o perfil do profissional que está ingressando no serviço público e como adaptar as provas e selecionar apenas aqueles com as características ideais? Depois que essas questões estiverem respondidas, os processos seletivos podem sofrer alterações, e os concurseiros precisarão mudar a forma de se preparar.

Em estudo encomendado pela Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), a Fundação Getulio Vargas (FGV) e a Universidade Federal Fluminense (UFF) fizeram uma análise das seleções públicas e propuseram mudanças. “A ideia é pensar em alternativas para trazer uniformidade e aperfeiçoamento aos concursos públicos”, explica o secretário de assuntos legislativos do Ministério da Justiça, Marivaldo Pereira. O levantamento faz parte do projeto Pensando o Direito, que financia pesquisas do meio acadêmico para solução de questões que podem ser levadas em conta pela administração pública na proposição de projetos de lei, por exemplo.

Uma das propostas é a substituição dos concursos nos moldes atuais por três processos diferentes de seleção. O primeiro, chamado de recrutamento acadêmico, daria oportunidades a quem acabou de se formar na faculdade. Os candidatos fariam exames que cobrariam conhecimentos adquiridos ao longo da vida escolar. A segunda alternativa de prova, o recrutamento burocrático, seria aplicada entre profissionais que já trabalham na administração pública há pelo menos cinco anos. Nesse caso, o foco é o conhecimento acumulado no setor. A terceira opção é o recrutamento profissional, voltado para quem tem experiência de 10 anos no mercado. As provas abordariam o ambiente profissional externo à administração pública.

Foco na capacitação

Somente após serem aprovados, os candidatos estariam prontos para estudar o funcionamento da respectiva repartição, ou seja, as provas não se relacionariam com o ambiente prático do serviço público. Para o coordenador da pesquisa, Fernando Fontainha, é preciso repensar a questão da profissionalização das carreiras públicas, aliando recrutamento e capacitação. “Na nossa proposta, a participação não acabaria com a homologação do resultado no concurso. O estágio probatório passaria a constituir uma verdadeira formação inicial, composta de um ano de aulas e mais dois anos de atividade supervisionada”, explica. Fontainha ressalta que o objetivo do estudo, mais do que apontar problemas, é abrir um debate sobre novas formas de seleção.
O tecnólogo em aviação civil Marcelino Almeida, 27 anos, reconhece a importância do treinamento de um futuro servidor e concorda com o foco na capacitação de trabalhadores. Ele busca um cargo de nível superior na área de administração e se dedica apenas aos estudos. “Com uma formação eficiente, você tem a oportunidade de filtrar os profissionais mais adequados ao perfil do cargo”, opina. “Muitas pessoas se envolvem em concursos mais pelo salário do que pela formação”, completa.

Outras sugestões também geraram polêmica entre especialistas em concursos públicos, como a substituição das provas de múltipla escolha por exames práticos e a proibição de se prestar o mesmo concurso mais de três vezes. Além disso, os pesquisadores indicaram a criação de uma empresa pública para gerir as provas. O diretor pedagógico do curso preparatório Academia do Concurso, Paulo Estrella, questiona: “O modelo atual se apoia no concurseiro, na banca e no Estado, que, se perceber alguma ilicitude, pode se posicionar junto ao candidato e anular ou impugnar o edital, ou, ainda, obrigar a banca a aplicar uma nova prova. Com essa empresa, o concurseiro não perderia um aliado?”.

Para o advogado especializado em concursos Sergio Camargo, a criação da empresa pode ser uma boa ideia, mas desde que haja regulamentação para resolver uma série de questões que não estão claras para o candidato, por meio do Estatuto do Concurso Público, que tramita no Congresso Nacional. “Faltam critérios para escolher bancas, anular concursos e publicar editais. A bagunça se deve à ausência do estatuto”, afirma.

As propostas, apresentadas em um relatório preliminar, estão sendo debatidas internamente com o Ministério do Planejamento, para serem aperfeiçoadas antes da elaboração de um documento final. “Lendo o relatório, é prematuro dizer qual sugestão poderia ser adotada ou não. Primeiro, vamos solicitar aos pesquisadores que deixem claro o fundamento jurídico de cada proposta e em que medida elas se embasam no material coletado pela pesquisa”, explica o secretário Marivaldo Pereira.
Há quem acredite que as mudanças sugeridas não contribuem para a democratização do processo. “É salutar permitir que todos participem dos certames”, defende o presidente da Associação Nacional de Proteção e Apoio aos Concursos (Anpac), Marcelo Portella. “Hoje, a possibilidade de o candidato ser mal avaliado é mínima e, por isso, as provas objetivas são um modelo usado em larga escala no mundo todo”, acrescenta. De acordo com ele, o foco no tempo de experiência ou na formação do candidato excluiria uma característica fundamental para o exercício na administração pública: a capacidade cognitiva. “Existem pessoas que não tiveram a possibilidade de construir um currículo tão bom, mas certamente possuem cognição adequada às funções e poderão passar no concurso. São candidatos que sabem mais sobre direito do que o próprio graduado na área.”



Igualdade ameaçada?

A administradora de empresas Karla Teixeira da Silva, 23 anos, que participa de certames há quase um ano, acredita que o conteúdo cobrado hoje nas provas é suficiente para avaliar bem o candidato. “Com o concurso, você já chega ao órgão com domínio da teoria, para, então, fazer o treinamento. Mudar os conteúdos derrubaria a qualidade dos servidores”, opina. Para ela, uma empresa poderia sobrecarregar a organização dos concursos, aumentar gastos e abrir possibilidade para fraudes. “Não iria dar certo, o processo de escolha de novos servidores regrediriam”, opina.

“O risco de se mexer no modelo atual é que sua característica principal se perca: a de que os concorrentes possam competir na mesma base”, argumenta Paulo Estrella. Para ele, o terceiro modelo peca por superestimar a capacidade do funcionário com experiência no mercado em detrimento dos funcionários públicos. “Não é porque o funcionário é considerado bom na iniciativa privada que terá, necessariamente, as características importantes para exercer um cargo público”, comenta. O advogado Sergio Camargo questiona, inclusive, a legalidade da proposta de recrutamento interno entre funcionários públicos para exercer novos cargos. “Um concurso interno para mudar de carreira é inconstitucional. O STF (Supremo Tribunal Federal) já havia decidido isso há muitos anos, para o provimento por acesso. Não se pode separar um número de pessoas sem nenhum critério para que prestem concurso, isso não é isonômico.”

Fernando Fontainha rebate as críticas: “Hoje, nos parece que uma condição quase fundamental para os concursos é a disponibilidade integral nos cursinhos, recurso que não é democraticamente distribuído para os brasileiros, sobretudo aqueles que não podem deixar de trabalhar para se preparar”. Além disso, o coordenador da pesquisa ressalta que questões de múltipla escolha são abstratas demais para o papel de um gestor público e, por isso, habilidades profissionais deveriam ficar em primeiro plano na seleção, por meio de aplicação de provas práticas que simulem situações reais que estarão à espera do futuro aprovado. “Os editais deveriam apontar claramente não apenas as atribuições, mas também as competências e habilidades esperadas dos servidores que pretende recrutar.”

Em tramitação

O Projeto de Lei do Senado nº 74, de 2010, em tramitação há três anos no Congresso Nacional, visa a regulamentar os processos de seleção do funcionalismo público em todos os âmbitos e poderes. O projeto prevê normas como o fim do cadastro de reserva, antecedência mínima de 90 dias para divulgação de edital antes da aplicação das provas e determina que a taxa de inscrição não poderá ser maior que 3% do valor da remuneração inicial prevista para o cargo, além de garantir a nomeação dos aprovados dentro do número de vagas definidas pelo edital. Hoje, o projeto está em análise na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado.




Correio Braziliense - 17/03/2013

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